quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Música

    - Pára! - Gritou o instrutor, o som áspero da sua voz a revibrar nos seus ouvidos sensíveis, arranhando e magoando. - Voltaste a errar.
     Ele baixou o violino com lentidão e fixou a pauta. Um dedo gordo e seboso intrometeu-se no seu campo de visão apontando para uma semi-colcheia esquecida. O dedo premiu com mais força o papel amarelado, quase em decomposição, e retirou-se novamente, maculando a pauta com um circulo de sebo.
    Olhou para cima, fixando o instrutor que revirava os olhos e suspirava, claramente desagradado. O homem bonacheirão, de peruca branca empoeirada de fresco, com bargas de veludo e colete bordado a ouro. A maldade escondida sob os folhos da alta sociedade.
    - De novo! - exclamou.
    Ele dispôs-se a erguer o violino, e com um fôlego rápido de incentivo e determinação, recomeçou a tocar a peça. As notas fluíam como borboletas debaixo dos seus dedos e ele deixou-se levar pela magia da musica que tocava. Alto, baixo, rápido, lento, em crescendo e com um partir repentino, retomando a alegre melodia.
   - Pára! - A magia desfez-se, a música cessou. O sorriso desapareceu.
   - Outra vez! - Recomeçou. De novo a magia, o flutuar, a imensidão de uma pauta já decorada.
   - Pára! - Um novo cair, um novo vazio espiritual.
   - Outra vez! - Leve como uma pluma, a erguer-se em direcção ao céu, quase a alcançar as estrelas...
   - Pára! - Um suspiro.
   - Outra vez! - A melodia a preenchê-lo por dentro, a leveza a surgir.
    De repente, caiu... algo o afastou da magia. Ninguém havia gritado e ele continuava a tocar, mas algo não estava bem. Um espasmo na sua mão. Olhou para ela. Pequenas gotas de sangue manchavam as corda alvas do violino.
  Provinham da sua mão. Já não sentia a magia, sentia apenas dor. Não podia deixar-se levar, mas não queria parar de tocar. Aumentou o ritmo. Não queria perder esta sensação. Queria mais, muito mais. Tocou com ferocidade. Sentia-se quase um animal. E desejava. Tinha fome. Tocava e aplacava a fome, mas nunca a saciava. Era mel envenenado. Os dedos começavam a ter cãibras. Uma única gota de sangue desprendeu-se a caiu no chão com um baque surdo, espalhando-se numa mancha escarlate. Vida. Viu a sua queda em câmara lenta e sorriu.
   Sentiu algo dentro de si a inflamar-se, a subir. A exigir. Maior, mais perturbador, mais exigente. Tocou com mais lentidão, provocando-o. O animal rugiu e estendeu-se a todas as extremidades do seu corpo. Fechou os olhos e sentiu-se arrebatado.
   A sensação desvaneceu-se lentamente, e ele baixou o ritmo para um toque mais suave, finalizando a música. Fixou o chão. A mancha de sangue era maior do que imaginaria ser possível. Assustou-se. A sua visão começou a ficar desfocada. O horror preencheu-o.
   Desfaleceu, sendo amparado pelo instrutor, que lhe sorria perversamente. Nos limites da sua consciência  sentiu o hálito do instrutor perto do si. Os seus ouvidos sensíveis, captaram um sussurro: "Veneno. Veneno nas cordas."
   Escuridão.