quinta-feira, 7 de março de 2013

Ressurreição

   Nenhum de nós foi feito para matar. Nenhum de nós tinha a personalidade, a capacidade de manipulação, ou a presença necessária para sobreviver naquele ambiente. Nenhum de nós era desejado pelos outros.
   Órfãos ingratos, fôramos chamados diversas vezes. Talvez o mais educado dos insultos, talvez o que mais magoasse. Era fácil lidar com a fome permanente, o frio permanente. Não era fácil lidar com a recorrente lembrança da nossa situação. Essencialmente, a falta do amor que nunca recebêramos.
   Por isso, não me recrimino por o ter seguido ou ouvido. Quando ele chegou, as pessoas avisaram-me. Os mais velhos cochichavam, os mais novos olhavam-no expectantes. Todos me avisaram: cuidado com a serpente. Não te deixes levar na manipulação dele, ele fará tudo para te prejudicar.
   Não é inteiramente verdade. Sim, manipulou-nos, mas, novamente, quem pode recriminar um órfão por ir atrás da maçã dourada, da promessa do amor e atenção que nunca tivéramos?
   Era uma aventura. Todos os dias as hormonas há muito adormecidas em mim vibravam com a perspectiva de o ver, uma montanha russa de emoções. E eu absorvia cada uma deles, mesmo as más, como a certeza que estava vivo e era necessário.
   Talvez a melhor altura da minha vida. Ele era belo e requintado. Eu apenas um rapazinho maltrapilho, demasiado magro, demasiado sujo. Quando me estendeu a mão, eu aceitei-a.
   Mas não sou estúpido. Sei que se aproveitou dos meus traumas, das minhas incertezas, da falta de amor e confiança na minha vida. Sei que quando me pediu para matar, não tive intenções de recusar. Que valia a vida de um desconhecido quando estava em causa tudo o que alguma vez fizera sentido para mim? Sei que quando me convidou para a cama dele, eu nunca pensaria em recusar. Não fora o que eu sempre quisera?
   Quem sou eu agora?
   A campainha tocou. Fui chamado. Mais alguém vai morrer para que eu mantenha  o meu vicio, o vicio da sua atenção. Porque é que isso me começa a incomodar? O que é isto que cresce em mim?