terça-feira, 19 de junho de 2012

Estilhaços

   Ela desceu as escadas, cambaleante. Vestia apenas uma camisa de noite branca. O cabelo preto estava emaranhado e despenteado, os olhos brilhavam e fitavam o infinito. Notavam-se olheiras profundas.
   - Hoje não vou trabalhar - declarou ela - Sinto-me cansada, acho que vou dormir um pouco. Ligas para a empresa?
   Ela já deixara de trabalhar na empresa à quatro meses. Ele fitou a luz fria que se escoava por entre os estores da janela. Já não se lembrava de os ver levantados. Já não se lembrava de quando a vida com ela era simples e feliz.
   Já não se lembrava do que tinha acontecido. Parecera-lhe natural, ela andara calada por muito tempo, sem reacção. Quando se apercebeu, já ela não o conseguia ver, já a sua mente se tinha estilhaçado.Tinha a sensação que fora ele que provocara aquela situação. Ele, com a sua constante ausência, com o seu constante ignorar dos problemas e anseios dela. Devia ter-se apercebido, devia ter lutado por ela. E, no entanto...
   Suspirando, olhou para o cimo da escada onde ela desaparecera. Ainda se sentia uma réstia do seu perfume no ar. Inspirou profundamente. Pensou nos seus olhos que não viam, no seu sorriso alheado, na magreza cada vez mais notória. Algo dentro dele se aqueceu. Era verdade.
   Mesmo quebrada, ele amava-a.